Como forma de celebrar os 10 anos de carreira de Lady Ice, o colunista do conhecido jornal britânico The GuardianBrian O'Flynn, publicou um artigo sobre o legado de Ice na comunidade LGBTQ+, citando como ela foi importante para os jovens desta geração.
Confira a tradução completa da matéria:
10 anos de Lady Ice: como ela trouxe para sempre o queer ao pop mainstream
Já faz uma década desde que Lady Ice estourou nos charts com Just Dance, e mostrou a uma nova geração como criar uma vívida identidade de você mesmo, onde estiver.
O ano é 2008. Eu sento no chão da modesta sala de estar da minha família em um subúrbio sonolento da Irlanda, e minha língua se contorce ao redor dos meus dentes enquanto me concentro para aplicar a camada final de glitter na minha obra prima. Esse era meu 14° ano de vida e também minha 14ª vez em uma hora que eu apertei o botão de replay no aparelho de CDs da minha irmã mais velha. Um mero mês antes dessa cena, Lady Gaga explodiu da escuridão - essa é a imagem dela que meu eu mais novo está reproduzindo em um cartão e com glitter, enquanto Just Dance, lançada 10 anos atrás essa semana, repete ao fundo.
Nesse momento, eu já sabia que qualquer coisa representada por essa mulher, esse símbolo, eu amaria de todo o coração. Eu sabia que ela é a personificação viva de um tipo ideal que diz quem eu sou. O que eu não sabia ainda é que quem eu sou é gay - e que toda minha homossexualidade seria entrelaçada inevitavelmente ao longo de toda minha vida com a Gaga. Ela se tornaria a música de fundo em todos os clubes gays que eu iria dançar, a introdução para cada beijo bêbado, um ponto de conversa para cada primeiro encontro.
Ícones pop femininos há muito tempo tornaram-se parte central da cultura gay, tanto que já foi escrito sobre o porque. Alguns dizem que vivemos vicariamente através de sua sexualidade; outras teorias freudianas sugerem que elas são nossas mães substitutas. Menos controverso, pode-se simplesmente dizer que suas brilhantes baladas pop sobre superação do amor e da perda historicamente proveram um alegre, brilhante e iluminado por luz estroboscópica escape de um mundo obscurecido pelas sombras do HIV e da homofobia. Antes de Gaga tivemos Madonna, Cher, Diana Ross. Você pode pensar que Gaga não fez nada além do que essas outras performers fizeram: forneceram glamour e campo de importância. Mas o lugar especial que ela ocupa no coração dos gays não pode ser reduzido apenas a sua propensão para mudar perucas - Lady Gaga trouxe o queer para o mainstream.
Ela surgiu em um cenário pop incrivelmente diferente do que vivemos em 2018. Os charts pré-Gaga em 2007 eram socialmente e politicamente estéreis, cheios de banalidades heterossexuais como Kaiser Chiefs e Timbaland. O mais próximo que conseguimos em representatividade queer foi a insípida isca-gay de Katy Perry, "I Kissed a Girl", em 2008. Estávamos no auge de um boom econômico, inconscientes da eminente catástrofe econômica que desencadearia uma revolução política que coincidiu com a ascensão de Gaga. Conforto econômico significava que a opressão era sentida com menos intensidade, que o discurso foi relaxado. Para crianças como eu, estagnadas em pequenas cidades, em países onde o casamento gay ainda era ilegal e a homofobia casual predominava, o silêncio parecia a calmaria antes da tempestade.
Alguns poderiam ter desconsiderado o conteúdo dos charts e olhado de volta para David Bowie, Prince e Boy George como modelos queer revolucionários - eles desestabilizaram as categorias de gênero uma década antes de Gaga nascer. Mas, para minha geração, esses ícones e sua androginia tranquilizadora estavam fora de alcance. Minha infância foi em uma terra alienante e culturalmente devastada, onde sobrevivi com uma dieta de música country irlandesa dos meus pais e o top 40 de pop dos meus colegas. Essa era ainda uma época de internet discada - e para muitas crianças queer pré-smartphone, modelos como Bowie também podem não ter existido.
Consequentemente, Lady Gaga virou meu mundo de cabeça para baixo. Eu sofria de ansiedade crônica, relacionada aos anos de bullying. Eu era ofensivamente afeminado e a escola era uma exaustiva tentativa de evitar os garotos mais velhos que cuspiam palavras como "bicha" em mim nos corredores. Após a explosão de Gaga, eu fiz meu próprio óculos incrustado de diamantes e pintei meu cabelo de verde. Os insultos nos corredores pararam quando, com Gaga, eu estava deliberadamente provocando a atenção. "Que aberração", meus colegas gritavam com fotos do vestido de carne de Gaga. Eu queimava com o desafio de ouvi-los insultá-la sem fazer nada a respeito; se quem eu amava era uma aberração, eu não queria mais ser normal. A palavra "bicha" ressoando nos corredores não mais me fazia inferior, mas me colocou no pedestal com outra aberração, minha heroína - que por acaso era #1 em 20 países. Sua alteridade fez minha própria alteridade parecer mais ambiciosa que dolorosa. Em um mundo de total escuridão, sua presença era minha única luz, um caminho sem palavras para mim mesmo antes que eu se quer soubesse o que a palavra queer significa.
Gaga fez por minha geração o que Bowie fez 20 anos atrás. Ela fez o mainstream, que tinha caído em uma mundanidade heteronormativa, queer novamente. Ela vocalmente defendeu os direitos das pessoas LGBT e falou da sua bissexualidade abertamente. No pop, ela expandiu o que era agradável. Ela re-popularizou as roupas extravagantes e ultrajantes teatralmente, no palco ela sangrava e fazia mudanças compulsivas de peruca. Ela pegou inspiração nos raios de Bowie, na moda de Alexander McQueen, na arte performática de Leigh Bowery, a androginia de Prince. Ela se apresentou em drag masculino e nos forçou a questionar as características de gênero e o físico humano com próteses faciais e pênis protético. Ela foi a pioneira para o renascimento do queer na cultura pop que deixou um legado surpreendente uma década depois - as pessoas dificilmente piscariam agora ao ouvir palavras como ‘transgênero’ em uma música no topo dos charts, mas antes de Born This Way esse tipo de pensamento seria chocante. É parcialmente graças à ela que nós agora vivemos em uma era onde ‘RuPaul’s Drag Race’ é mainstream.
Na verdade, Drag Race é talvez a chave para entender o que Gaga fez para jovens queer. Quando Gaga apareceu como anfitriã na nona temporada do show, ela entrou agindo como se fosse uma das competidoras. Não é insignificante que Gaga se introduziu como drag queen - é precisamente o que ela sempre tem feito e o que ela ensinou jovens queer como eu a ser.
Drag é sobre pegar emprestado referências culturais para construir uma persona. Quando Gaga reinventou o espírito revolucionário queer de Bowie e Prince para a juventude do início do milênio, ela estava performando um drag dela. Ela pegou emprestado tropas para construir sua persona que contribuiu com sua fama, figurativamente dublando os legados de Cher, Madonna e as estrelas que ela imitou. Ela inventou Gaga da mesma forma que drag queens inventam seus alter egos.
Milhões de jovens homossexuais usaram o exemplo para construir suas próprias identidades em pequenas cidades e vilas alienadas ao redor do mundo. Cada pessoa precisa de referência para informar sua performance social, para fazer meio que um drag na sua vida diária. Gaga ofereceu às pessoas estranhas referências que nossas cidades heteronormativas não conseguiram, trazendo de volta o passado e passando isso adiante para aqueles de nós que não podia acessá-lo sozinhos. Ela ensinou uma nova geração de jovens queer a construir uma identidade a partir de um sentimento ao redor deles, olhando a história e a cultura pop. Isso é o que os gays sempre fizeram - mas muitos da minha geração não sabiam como. A minha geração foi uma na qual mentores tinham sido dizimados pela epidemia HIV; uma geração onde coesão no mundo real da comunidade gay estava sendo destruído e espaços gay estavam fechando.
Gaga substituiu meus mentores. Quando eu imitei sua ultrajante apresentação, eu estava batendo nas referências que ela ofereceu para expressar uma singularidade que eu ainda não era capaz de colocar em palavras. Sem ela nos charts, muitos jovens como eu teriam sido deixados sem critérios fundamentais. Ela nos ensinou a sermos drag queens na nossa própria vida - como RuPaul diz, ‘Nós todos nascemos nus, o resto é drag’. Quando Gaga veio participar do Drag Race 9, ela estava em casa. Sua importância foi resumida com linda simplicidade quando uma das participantes, Eureka, desabou, dizendo ‘você não tem ideia do que você faz por pessoas como nós’.
Dez anos depois, o legado de Gaga é a mudança do mundo. Para mim e muitos gays ao redor do mundo, ela é o ícone da nossa geração, a quem nós devemos nada menos que nossas identidades. Baby, não há outra superestrela.